terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Amarelecendo

Tenho em mim essa insatisfação contínua, essa falta de vocabulário pra cada cheiro mal cheirado, ou mal cheiroso. Penso que, se a  cada desejo me viesse um poema, os dias seriam de papel e espuma, ou algodão, ou água em vapor. Mas, como meus pés precisam dessa areia, terra, enterrada, raiz de toda planta, não espanta que eu não faça uma única linha. A imagem que me falta aparece em múltiplo mosaico. Da última festa que eu fui e do primeiro parabéns. Quando eu não tinha dentes era mais fácil, precisava de papinha. Agora sempre me vem carne dura no almoço. E é por isso que não tenho costumado jantar. Mas aí é que mora o problema. X menos Y tem casa na proteína animal, e o resultado é sempre o que a gente quer alcançar. A resposta.  Mas todo mundo morre de anemia. Cada cavalo branco que vejo ao longe, quando chega perto amarelou do sol. Ou do barro. Ou meu olhar tá amarelecendo, anemificando. E isso sim é triste de ser ver. Foto velha só é bom pra quem é jovem demais. Eu, como ando tendo 78, fico assustada na carona. Mas sempre em busca de um novo horizonte a cada cavalo branco. E um cavalo branco a cada novo horizonte

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Melhor que nada

Bom dia, dia.
E ela acorda forçando o sorriso pra dizer a alguém que acordou feliz.
Olhou pros seus trapos velhos e tentou imaginar seda pura. Era burrice contar os buracos feitos pelo tempo e pelas traças. O tempo continuaria passando.
Tomou seu café com pão. Tentou lembrar o sabor e o cheiro do queijo. Do prato. Comia com a mão.
Escreveu duas linhas tortas achando que era poesia concreta.
Fez caretas pro espelho pra não se esquecer dos tempos de palhaça de circo, quando roubava banana dos macacos. Nessa época não sentia fome. Era gorda dos olhos.
Agora, depois da refeição, resolveu tirar mais um cochilo. Nos seus sonhos às vezes surgia um príncipe que vinha a pé, sem calçados.
Ainda assim era bom. Melhor que nada.
Acordou e forçou um canto pra dizer a ninguém que sabia cantar.
Olhou pros seus trapos velhos e imaginou algodão. Era burrice contar as manchas do suor de outrora. Já não suaria mais.
Tomou mais café com pão. Frio e duro. Até lembrava como fazer fogo, mas teve preguiça de esfregar as pedras.
Escreveu duas linhas retas achando que era testamento.
Quebrou o espelho pra esquecer o quanto a fizeram de palhaça, roubaram suas bananas e secaram suas vontades.
Teve enjôo de pensar em dormir e ver o príncipe a pé, descalço, de pés sujos. Era pior que qualquer coisa.
Resolveu deitar junto aos seus trapos. Era burrice pensar no frio. Uma hora acaba fazendo calor.
Juntou tudo às pedras do fogo e fez um travesseiro de brasa.
Deitou, não sorriu, não cantou, e não sonhou.
Melhor que nada.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Não caio no mesmo erro duas vezes. Porque no segundo seguinte o mesmo erro já virou outro, e aí sim. Todo erro novo é muito instigante pra mim.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

domingo, 10 de outubro de 2010

Maria Rita

(Em homenagem ao Dia das Crianças. Começando pelo que é começo)

Maria Rita era muito sapeca. Gostava de olhar os meninos tomarem banho pelo olho da fechadura. Menina! O que era aquilo que lhe faltava? E faltava porquê? E se olhava no espelho desapontada. Maria Rita facilmente se irritava. Raspava a sobrancelha porque não gostava de pêlos e rezava pra não aparecerem nunca mais. E saía pra jogar bola, com os cabelos curtos, crescendo da última raspagem. Os meninos gritavam: joga a bola, Maria Rita! E Maria se sorria, se tremia, envaidecia. Grande jogadora, todo bairro já sabia. À noite Maria Rita arranhava um violão. Enchia de gente na sua calçada. Meninada cansada, suada e feliz. As roupas cheirando a jogo, a riso e juventude. Maria Rita tocava olhando a revista musical. Aprendeu com elas, e com o radinho de pilha do avô, quando não tava no futebol.
Gostava também de patins, bola de gude e pipa. E, vez ou outra, um videogame na casa do Digão. Eram da mesma escola. O uniforme igual. Da aula e do jogo. Tinham o mesmo relógio, a mesma hora  e o mesmo tempo. Um procurava, o outro escondia. Ele contava e ela corria. Formavam uma dupla e tanto!
Num sábado de jogo Maria Rita foi aplaudida. Artilheira! Entre meninos, a única menina. Uniforme como os outros. Xingamentos à altura. E os meninos a olhavam, cheios de admiração. Maria Rita, suada, tomou banho no vestiário. E nua, surpresa e crescida, viu embaixo do braço um pêlo adolescente. Com vergonha então, procurou uma testemunha, e viu, quase contente, no buraco da fechadura, o olhar doce do Digão